quinta-feira, novembro 27

Ideia acordou sem acento!

Marcelo Spalding

Hoje acordei sem idéia. Tudo bem, ideia acordou sem acento. E esqueceram de avisar ao Word, que acentuou ideia sem eu pedir! Bem, não vai ser fácil, mas esta será minha primeira crônica sob a égide da nova reforma ortográfica. Não vai ser nem um pouco fácil, afinal, nunca passei por uma reforma antes. Desde que aprendi a ler e escrever, ideia tem acento... Mas seria bem mais difícil se eu fosse português. Ah, de facto seria.

Primeiro, é preciso lembrar que a intenção da reforma é mais política e econômica do que lingüística. Embora não elimine de todo as diferenças ortográficas nem pretenda interferir nas culturais, a reforma ortográfica unifica a ortografia oficial do português, única língua importante com duas ortografias oficiais distintas, e por este motivo tem sido chamado de Acordo e não de Reforma. Não deixa de ser reforma, é claro. Mas com olhos mais voltados aos contratos internacionais que, quando redigidos em português, precisavam de duas versões; ao mercado de livros, que se via obrigado a fazer edição especial para além-mar; ou ao continente africano e suas potencialidades político-econômicas do que às reformas que cotidianamente se faz na língua.

Por exemplo: para para pensar. Agora não tem mais acento no "pára", então fica assim mesmo: para para pensar. Talvez essa falta de acento nos faça tropeçar na frase, e aí eu escreveria, como falo, "para pra pensar" e não "para para pensar", o que pode acarretar que daqui a uns cinqüenta anos a preposição para vire definitivamente pra, a fim de diferenciar-se do outro para. Mas agora, pelo menos, qualquer texto em norma culta escrito em Porto, Lisboa, Luanda, Maputo ou Rio de Janeiro terá essa forma: para para pensar.

Claro que a reforma, ou acordo, traz consigo enorme polêmica. Para alguns, a mudança é desnecessária, dispendiosa, coisa de partido de esquerda quando chega ao poder. Para outros, é tímida demais, deveria começar eliminando os hífens e, quem sabe, depois os acentos todos. Particularmente, acho que o grande problema é que a mudança nos faz perceber como o tempo está passando e como precisamos mudar, nos atualizar. Mudar não só o acento da ideia como também as próprias ideias...

Porque mudar o dicionário é como mudar a posição solar, a divisão dos países, a cor da bandeira: desde que nascemos ideia é idéia e, de uma hora para outra, não é mais. E por que não é mais? Pelo mesmo motivo que um dia fora. Esse tipo de mudança numa instituição forte como a ortografia nos faz perceber, portanto, como também nossa língua é fruto de construções, construções que com o tempo se perdem e por isso passamos a tomar as palavras por códigos arbitrários. Mas observe, por exemplo, a palavra discar: daqui a cinco gerações continuarão usando discar com o sentido de telefonar, mas poucos lembrarão que, um dia, os telefones tinham um disco e para se falar com alguém era preciso discar... Outra palavra, para ficar nas afetadas pela reforma: mandachuva. Não tem mais hífen, porque ninguém mais lembra por que se uniu, um dia, "manda" e "chuva" para designar alguém mandão. Ninguém lembra, nem eu, mas alguma razão há de existir.

No frigir dos ovos, tenha a palavra "linguística" trema ou não, as pessoas continuarão tendo dificuldades para lidar com as regras de acentuação ou com a confusa conjugação dos nossos verbos, com as palavras em inglês ― e, agora, em chinês ―, continuarão tomando conta dos dicionários e homogeneizando as línguas e culturas como um todo e, pior ainda, as pessoas continuarão escrevendo pouco, muito pouco. Com ou sem acento, com ou sem hífen.

Para nós, que saímos da escola quando Plutão ainda era um planeta, evidentemente que adaptar-se à mudança será uma epopéia: teremos de desautomatizar a colocação dos acentos e do trema, comprar dicionários novos, mudar o corretor ortográfico do computador. Ou não, porque assim como nos anos setenta uma parcela da população manteve-se conservadora e insistindo no pôrto ou no cafézinho, é possível que muitos se neguem a adquirir novos hábitos e insistam a escrever como aprenderam na escola.

Mas, no final das contas, fique tranquilo, tudo continuará como antes. As assembleias europeias continuarão protecionistas, confusas e poderosas. As mulheres seguirão nuas em pelo nas esquinas das cidades. Grupos antissemitas continuarão existindo, e também grupos antirreligiosos. A Coreia do Norte continuará antipática à Coreia do Sul. Delinquentes continuarão fazendo sequestros relâmpagos. Voos heróicos continuarão matando inocentes sob o aplauso de uma plateia patética diante da televisão. Pseudointelectuais continuarão dizendo que leem poetas neossimbolistas, romances neorrealistas. E eu continuarei não gostando de pera nem de geleia nem de tramoia nem de feiura.

Agora, para terminar esta primeira e trabalhosa crônica sob a égide da nova reforma ortográfica, quero reproduzir, devidamente vertida para o Novo Português, um trecho de "Por que Faraco é a favor da mudança ortográfica", primeira coluna que escrevi sobre este tema, em novembro de 2007:

"Faraco considera a rejeição à mudança ortográfica proposta apenas um sinal claro de que os falantes de uma língua rejeitam mudanças recentes em sua língua, especialmente se elas mexem na língua culta, onde há forte monitoramento social, mesmo quando elas já são usuárias da mudança. Por isso os mesmos que em casa falam 'a cidade que nasci' ou 'vamos se respeitar' na escola dirão, aos berros, que o correto é 'a cidade em que nasci' ou 'vamos nos respeitar' (isso quando não se hipercorrigirem e inventarem 'vamos nos respeitarmos').

Na base de tudo isso, segundo o gramático, está a vergonha que o brasileiro tem da própria língua e o fato de que 'nossa sociedade é intolerante e preconceituosa, não admite a diversidade'. Mas aí seria tema pra outra coluna, outra palestra e outra polêmica. Por ora, nos interessa apenas lembrar ainda que os países de língua portuguesa que motivam essa disputa 'ortografopolítica', especialmente Angola e Moçambique, libertaram-se de Portugal apenas em 1975, depois de sangrentas guerras coloniais, e só no século XXI conseguiram erradicar as guerras civis patrocinadas em seus territórios por comunistas e liberais, emergindo agora de uma situação de profunda pobreza e despertando o interesse comercial das nações em desenvolvimento. Afinal, trata-se de uma população de 20 milhões de pessoas em Moçambique e 12 milhões em Angola, ambas mais populosas, apesar de tantas mortes e guerras, do que a população de Portugal."
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Do site Digestivo Cultural.

quinta-feira, novembro 20

E mais discões

Meus poucos e fiéis leitores, dou as caras aqui depois de longo inverno pra falar de novos disquinhos - que perante minha demoram já se tornaram velhos. A pilha na minha mesa está praticamente despencando. Resolvi escrever apenas uma linha sobre cada um deles e paciência!

* O primeiro é o Hemisférios, do superbaixista Thiago do Espírito Santo, gravado ao vivo no Cachuera e lançado pela Fubá Music. Lindo CD, gravado em trio, Thiago, Alex Buck na bateria e Edson Santana ao piano. Detalhe para o belo encarte, que traz a reprodução de um quadro do Sergio Fabris. O disco só tem um defeito: são apenas sete músicas ;-)

* Vinícius Dorin, Revoada - Belo CD de um dos maiores saxofonistas do Brasil, lançado pela Maritaca.

* O próximo CD é novíssimo, saído da fábrica: Abrideiras, do grupo Fina Estampa, Acari. São doze choros interpretados pelo Lucas da Rosa (bateria e percussão), André Ribeiro (bandolim), Maria Beraldo Bastos (clarinete), Joana Queiroz (clarone sax e clarinete), Eduardo Lobo (violões) e Danilo Penteado (cavaquinho e baixo). Tem a participação do Maurício Carrilho e músicas lindas, como Obrigado Paulinho, do Radamés Gnattali e Um Draminha pro Sr. Incrível, da Maria Beraldo Bastos.

* Samba de Fato e Cristina Buarque interpretam Mauro Duarte - CD duplo da DeckDisc. Importante resgate desse grande compositor.

* Egberto Gismonti Group - Música de Sobrevivência - que disco espetacularrrrrrrrr. Ficou meses no meu som aqui, não conseguia parar de ouvi-lo.

* Angenor - Cida Moreira - Lançamento recente da Lua Discos. Cida fez um bonito disco, com uma seleção de repertório excelente. Dentre elas:

A canção que chegou

(Cartola/Nuno Veloso)

Toda tristeza que havia
Agora expulsei
Com a canção que chegou
E vou cantando alegre
A felicidade que Jesus mandou
Lembro dos tempos de outrora
Que quase me roubam
A esperança e a fé
E hoje me volto contente
Cantando pra Deus
Que tanto me ajudou
Não vou culpar os amigos
Fingidos que outrora eu tive
Na vida
Nem vou dizer
Que a razão do fracasso
Se prende a batalhas perdidas
E confiante despeço-me
Todo feliz a cantar
Agradecido ao bom Senhor
Por me ajudar.

Evite, meu amor

(Cartola)

Evite, meu amor
Recuse os braços meus
Evitarei os beijos teus
Culpado foi o destino
Se somos dois feridos
Pois preparou a trama
E entregou ao cupido
Vem, vem, estais chorando
Por certo chorarei
Feliz está teu coração
E peço-te perdão
Das vezes que errei
Mas este amor evitarei.

Feriado na Roça

(Cartola)

Quando soube que Maria Rosa vinha
Da cidade onde tinha ido há dias passear
Gritei contente graças ao nosso senhor
Eu pensei que meu amor
Não queria mais voltar
E tratei logo de enfeitar minha palhoça
Parei toda minha roça
Lá ninguém mais trabalhou
Mandei um cabra na taberna de João Bento
Comprar encordoamento
Para dar aos tocador

Daí a duas ou três horas já passadas
Chegou ela acompanhada
De um rapaz de uns 30 anos
E foi chegando
Foi entrando, que coragem
Arrumando a bagagem
Me dizendo vou voltar
Naquela hora minha vista ficou escura
Minha mão foi à cintura e dois tiros disparei
E me encontraram com a arma fumegando
Seu doutor, rindo e chorando
Se morreram os dois não sei.
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Essa pérola me lembrou outras duas com a mesma temática: Vingança
(Francisco Mattoso e José Maria de Abreu), gravada originalmente por Gastão Formenti em 1935 e regravada divinamente por Mônica Salmaso em seu Iaiá e ainda Quando o samba acabou, do meu predileto Noel Rosa, gravada originalmente em 1933 por Mário Reis.

* Leny Andrade (1975) - da série Clássicos Odeon. Disco belíssimo. Samba puro. Músicas de Ederaldo Gentil, Wilson Moreira, Ary Barroso, Billy Blanco, Waldir da Fonseca, João de Aquino, dentre outros. Músicos da pesada como Xixa (cavaquinho), Evandro do bandolim, Carioca (violão de 7), Branca de Neve (percussão), etc. Destaques:

Prum Samba
(Egberto Gismonti)

Só de documento
Carrego um coração
Que anda espiando
Procurando uma canção
Seja de lua, de morena
Ou de amor, eu amo
Falando mesmo francamente
Eu já estou descrente
Deste meu povo que já não entende
Que basta um pouco de carinho
Um cavaquinho rouco
Uma flautinha, um violão
Prum samba.

Folha Morta
(Ary Barroso)

Sei que falam de mim
Sei que zombam de mim
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz!
Vivo à margem da vida
Sem amparo ou guarida
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz!

Já tive amores
Tive carinhos
Já tive sonhos
Os dissabores
Levaram minh'alma
Por caminhos tristonhos

Hoje sou folha morta
Que a corrente transporta
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz, infeliz
Eu queria um minuto apenas
Pra mostrar minhas penas
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz!
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Leny arrasou cantando este lindo samba-canção do Ary Barroso, que foi imortalizado por Jamelão (que trocou uma palavra na letra de Ary Barroso, no lugar de "pagar minhas penas", cantou "mostrar minhas penas". Quando o disco saiu, Jamelão levou-o a Ary Barroso, pois estava muito animado com a gravação e queria a aprovação do exigente autor. Após ouvirem juntos, Ary comentou: - Você tem razão. A gravação está excelente. Mas eu não posso "mostrar" minhas penas, Jamelão! Não sei se você já percebeu, eu não tenho penas, Jamelão! Eu sou um animal implume, Jamelão!

Presente do Mar
(Guga de Ogum)

Saravá a Rainha do Mar
Mamãe Iemanjá
Saravá a Rainha do Mar
Presente vou levar
Quero ver redemoinho no mar
Quando o presente arriar

Meu corpo está limpo
De tira-teima e abre-caminho
Espada de Ogum e Corana
Guiné e São Gonçalinho
Cada qual com sua crença
Cada qual com sua fé
Vou arriar meu presente
Na enchente da maré, Odoiá

Vestido de branco eu vou
Com a paz no coração
Peço pra abrir meus caminhos
Conto com a sua proteção,
ô minha mãe.
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Belíssimo ponto cantado lindamente.

Praça Mauá
(Billy Blanco)

Praça Mauá
Praça feia, mal falada
Mulheres na madrugada
Onde bobo não tem vez
Praça Mauá
Dos lotações de subúrbio
Lugar comum do distúrbio
Nos trinta dias do mês
Mas se algum dia
Eu mandar nessa cidade
Serás praça da saudade
Do adeus, da emoção
Praça Mauá
O nome me traz à mente
Um soluço, um beijo quente
E um lenço branco na mão.
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Linda, linda, linda!

* O próximo é o CD Canção do Amor Demais, Olivia Byington canta Tom e Vinícius. Adoro a Olivia, muito muito mesmo. Sou fã dela há séculos. Tive a honra de dividir o mesmo palco com ela no projeto Corrente do Samba, do Arismar, no Sesc Vila Mariana há alguns meses. Ela é uma querida.



Neste disco grande feras como Hamilton de Holanda, Marco Pereira e Dirceu Leite, só pra citar alguns. E músicas lindas... várias já publiquei a letra aqui em outras ocasiões. Vou postar três que eu adoro:

As praias desertas

(Tom Jobim)

As praias desertas continuam
Esperando por nós dois
A este encontro eu não devo faltar
O mar que brinca na areia
Está sempre a chamar
Agora eu sei que não posso faltar
O vento que venta lá fora
O mato, onde não vai ninguém
Tudo me diz
Não podes mais fingir
Por que tudo na vida
Há de ser sempre assim
Se eu gosto de você
E você gosta de mim
As praias desertas continuam
Esperando por nós dois.

Estrada branca

(Tom Jobim e Vinícius de Moraes)

Estrada branca
Lua branca
Noite alta
Tua falta caminhando
Caminhando
Ao lado meu
Uma saudade
Uma vontade
Tão doída
De uma vida
Vida que morreu

Estrada, passarada
Noite clara
Meu caminho é tão sozinho
Tão sozinho
A percorrer
Que mesmo andando
Para a frente
Olhando a lua tristemente
Quanto mais ando
Mais estou perto
De você

Se em vez de noite
Fosse dia
O sol brilhasse
E a poesia
Se em vez de triste
Fosse alegre
De partir
Se em vez de eu ver
Só minha sombra
Nessa estrada
Eu visse ao longo
Dessa estrada
Uma outra sombra
A me seguir

Mas a verdade
É que a cidade
Ficou longe, ficou longe
Na cidade
Se deixou meu bem-querer
Eu vou sozinho sem carinho
Vou caminhando meu caminho
Vou caminhando com vontade de morrer.
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Clássico da música brasileira, imortalizado na voz de Elizeth Cardoso. Amo! Só faltou aqui neste disco a parceria do Vinícius.


Janelas Abertas

(Tom Jobim/Vinicius de Moraes)

Sim
Eu poderia fugir, meu amor
Eu poderia partir
Sem dizer pra onde vou
Nem se devo voltar
Sim
Eu poderia morrer de dor
Eu poderia morrer
E me serenizar
Ah, eu poderia ficar sempre assim
Como uma casa sombria
Uma casa vazia
Sem luz nem calor
Mas quero as janelas abrir
Para que o sol possa vir
Iluminar nosso amor.

Outra vez
(Tom Jobim)

Outra vez
Sem você
Outra vez, sem amor
Outra vez
Vou sofrer
Vou chorar
Até você voltar
Outra vez
Vou vagar
Por aí
Pra esquecer
Outra vez
Vou falar
Mal do mundo
Até você voltar

Todo mundo me pergunta
Porque ando triste assim
Ninguém sabe o que é que eu sinto
Com você longe de mim
Vejo o sol quando ele sai
Vejo a chuva quando cai
Tudo agora é só tristeza
Traz saudade de você.

E assim acabou meu tempo, e ainda faltam uns trinta cds pra eu escrever... o que será de mim?

domingo, novembro 2

Proveta e convidados na Fecap

Estaremos na Fecap dias 8 e 9 de novembro, show IMPERDÍVEL!