domingo, fevereiro 5

E por falar em Clarice...

"Sei da história de uma rosa. Parece-te estranho falar em rosas quando estou ocupada com bichos? Mas ela agiu de um modo tal que lembra os mistérios animais. De dois em dois dias eu comprava uma rosa e colocava-a na água dentro de uma jarra estreita para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa murchava e eu a trocava por outra. Até que houve determinada rosa. Cor-de-rosa sem corantes nem enxertos porém do mais vivo rosa pela natureza mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões. Parecia tão orgulhosa da turgidez de sua corola toda aberta e das próprias pétalas que era com uma altivez que se mantinha quase erecta. Porque não ficava totalmente erecta: com graciosidade inclinava-se sobre o talo que era fino e quebradiço. Uma relação íntima se estabeleceu intensamente entre mim e a flor: eu a admirava e ela parecia sentir-se admirada. E tão gloriosa ficou na sua assombração e com tanto amor era observada que se passavam os dias e ela não murchava: continuava de corola toda aberta e túmida, fresca como flor nascida. Durou em beleza e vida uma semana inteira. Só então começou a dar mostras de algum cansaço. Depois morreu. Foi com relutância que a troquei por outra. E nunca a esqueci. O estranho é que a empregada perguntou-me um dia à queima-roupa : "e aquela rosa?" Nem perguntei qual. Sabia. Esta rosa que viveu por amor longamente dado era lembrada porque a mulher vira o modo como eu olhava a flor e transmitia-lhe em ondas a minha energia. Intuíra cegamente que algo se passara entre mim e a rosa. Esta - deu-me vontade de chamá-la de "jóia da minha vida", pois chamo muito as coisas - tinha tanto instinto de natureza que eu e ela tínhamos podido nos viver uma a outra profundamente como só acontece entre o bicho e o ser humano."
_________________________________________________________________________________

Água Viva, Clarice Lispector